sábado, 30 de julho de 2016

Blue: Arte e melancolia com uma pitada ácida de humor


Você já teve a oportunidade de ler ou apreciar alguma obra independente brasileira? Não? Então, venho hoje pedir para que reveja seus conceitos. Caso a resposta seja "sim", delicie-se com mais um projeto publicado sem as amarras e opiniões de editoras politicamente corretas.

"Blue" é o nome deste livro de tirinhas publicadas em 2014 pelo gaúcho Rafael Koff, mediante financiamento coletivo pelo Catarse.

Mas vamos deixar as apresentações de lado e ir direto ao assunto: a magia da obra. O pequeno livro (sem ISBN) nada mais é do que uma coletânea de 91 verdades dolorosas expostas ao leitor por meio de tirinhas de humor ácido (até mesmo pesado, visto que algumas delas são muito polêmicas por serem total politicamente incorretas).

Rafael Koff não teve medo de "cuspir" a verdade na cara do leitor. Neste livrinho (como ele mesmo chama), as tirinhas humorísticas são pautadas e realizadas com base "na luta diária dos seres humanos contra a apatia gerada pela aparente falta de sentido da vida"(sic página 69). Profundo, não é? Digo, genial! Porém, infelizmente, o escrachado humor do senso comum se resume, muitas vezes, no simples fato de peidar.


Mas não estou aqui para lamentar a mediocridade do ser humano, quem ficou com esta tarefa foi Rafael Koff, o qual conseguiu colocar maravilhosamente em prática seu intento. 

Ao abrir o livrinho, deparamo-nos com a primeira tirinha, chamada "inteligência", que consiste na descrição de um momento vivido por um cão e seu dono. Nele, o dono ordena que o cachorro sente, sem, contudo, ser obedecido. O cão está aparentemente feliz, abanando o rabinho e suando (pois está com a língua para fora). Porém, o dono não ficou contente com a desobediência do cão, por não ter sentado imediatamente após lhe ter sido ordenado. Por isso, o dono decide levar seu cachorro à uma escola de adestramento, para que deixe de ser "idiota". Meses depois, a mesma ordem foi dada por seu dono ao cão: "SENTA!", mas agora o cão não é mais um idiota bobo alegre, então responde ao dono algo digno e perfeito à uma mente consciente de sua existência insignificante na terra: "Por que deveria fazê-lo [sentar] quando a vida é desprovida de significado? Para que obedecer a uma figura autoritária quando a pena máxima que ela poderia infligir é mínima se comparado ao sofrer intrínseco à própria existência?". É com este humor sutil e cáustico, aplicado em temas que costumamos fugir ao invés de enfrentar, que as tirinhas começam a ser apresentadas ao leitor.


E não para por ai, como eu disse, daí para frente ainda teremos mais 90 tirinhas a serem lidas, que nada mais são do que mais 90 tapas na cara.

Por mim, eu apresentaria todas aqui e agora, analisando os meandros e a genialidade de cada uma delas, mas este não é objetivo desta postagem. Porém, como eu não consigo aguentar minha língua, minha escrita e minha mente reavivada pela leitura de "Blue", sinto-me na obrigação de comentar mais algumas tirinhas do livro.

Por isso, se você já se convenceu da genialidade da obra, da potencialidade das próximas tirinhas e já criou o sentimento de ódio no coração por qualquer tipo de spoiler a ser realizado sobre livrinho "Blue", pare de ler agora mesmo e abra a carteira para comprar o livro. Se você, contudo, não for tão ferrenho, aproveite a viagem e veja o que mais o "Blue" pode oferecer.

Contei nos dedos quantas tirinhas abordam o sentimento que se torna cada vez mais comum nos seres humanos atuais: insatisfação com a vida profissional e nada fazer quanto a isso a não ser imaginar como seria sua vida se mudasse de profissão. E pior: na imaginação sempre acaba parecendo que a vida seria 253346234723742 vezes melhor que qualquer outra forma senão aquela que está sendo vivida. Minha preferida sobre este tema (que foi abordado de diferentes formas em cada tirinha), é a chamada "Ciclo da insatisfação".

Nesta tirinha, um mesmo cara se imagina tendo uma vida vazia e sem sentido declarando querer trabalhar divertindo as pessoas. No próximo quadro, seguindo em direção à flecha desenhada, este mesmo homem está vestido de palhaço e está triste, pois é considerado um idiota e tem toda a certeza que queria ser um artista sério e respeitado. Em seguida, andando no caminho apontado pelas flechas desenhadas, o mesmo cara está com roupas típicas de pintor, reclamando que não consegue ganhar dinheiro e que, por isso, preferia ganhar um salário fixo. Novamente, no quadro seguinte, ele está com roupa de trabalhador braçal, imaginado sua felicidade se fizesse algo mais intelectual. Então, avançamos para o próximo quadro, onde o homem está de óculos (típico "intelectual"), porém, novamente, deprimido, pois não é reconhecido como deveria e, com certeza, se fosse famoso as coisas seriam diferentes. O famoso do quadro seguinte, contudo, não se sente nenhum pouco a vontade com os paparazzi e tem a plena convicção que sua vida seria suficientemente feliz se fosse um anônimo. Agora, o protagonista da tirinha está vestido como mendigo, e agora reclama da fome e que até se prostituiria em troca de uma refeição. Porém, como prostituto ele, novamente, não se sente feliz, e imagina sua vida sendo finalmente boa caso tivesse um emprego sério. E é aí que voltamos para o início, com o cara de camisa social e gravata, reclamando da sua vida vazia e imaginando como seria bom trabalhar com algo que pudesse divertir as pessoas. 


Essa tirinha em específico é ótima para demonstrar que o preenchimento do vazio existencial quase nunca está interligado com sua escolha profissional, pois é algo muito mais complexo que isso.

Por falar em vazio existencial, há também (claro) uma tirinha muito boa sobre isso, na página 34. O autor representa o tal do "vazio" como um pequeno monstrinho faminto que tem um bocão, pedindo sempre por mais comida. É interessante a reflexão: "Todo mundo tem um vazio existencial dentro de si. / Algumas pessoas tentam preencher ele com comida. / Outros com drogas. / Com compras. / E religião. / Mas ele nunca vai embora".


Esta da foto acima é ótima para simbolizar que o vazio existencial é o natural o ser humano e que ele precisar ser controlado, entendido e assimilado para que possa de engrandecer e não te afundar ainda mais, sendo esta a consequência desastrosa para aquele que tenta alimentá-lo com paliativos - a permanência ainda mais "faminta" desse vazio que tentamos a todo o custo mimar e ignorar.

 Enfim, são tantas a minhas tirinhas preferidas e seria impossível, para mim, colocá-las num ranking de quais seriam as "melhores". Mas, algumas realmente me marcaram e me fazem refletir de vez em quando.

Uma delas é a tirinha da página 74, chamada "Por que relacionamentos falham?". Ela é realmente perfeita para demonstrar o grande problema vivido pela grande maioria dos casais na atualidade, que vem desde a infância e, talvez por isso, esteja tão enraizada e praticamente impossível de desvencilhar. 

A tirinha é dividia em quatro quadros. No primeiro vemos duas crianças, aos 7 anos, assistindo TV, sendo um menino e uma menina. O menino vê uma mulher na TV dizendo "estou muito excitada e vou tirar a roupa" e a menina vê um casal dizendo "sempre vou te amar, até o fim dos tempos". No segundo quadro, essas crianças já estão com 12 anos, e a coisa não muda muito. O menino está "lendo" a revista da Playboy e a menina a revista das Princesas Disney. No terceiro quadro, aos quinze anos, as conversas com os amigos mostram como será o rumo desta história. O menino conversa com o colega e diz "ela tinha uns peitos enormes!" e as meninas falam: "ele mandou flores e um cartão, imagina que romântico!". No último quadro, aos vinte anos, tudo já está fora dos trilhos e a "sintonia" que um homem e uma mulher poderiam ter a essa idade já está totalmente desfeita e sem esperanças de encontrar o caminho da luz. O futuro casal está num restaurante, ela vê o homem a sua frente como um príncipe encantado, e ele a vê como uma espécie de ninfomaníaca. Dois arquétipos de parceiros totalmente inexistentes na vida real e que, por serem totalmente antagônicos, jamais terão o poder de trazer a felicidade a dois. Está aí, portanto, de maneira escancarada, o porquê dos relacionamento nem sempre funcionarem. 


Mas não posso me esquecer da tirinha chamada "Tempo". É realmente ótima. Ela se baseia totalmente no dito popular "Eu sempre matava tempo quando pequeno. / Agora nunca encontro tempo para nada". A ilustrações realizadas com base nestas duas frases ficaram ótimas. Talvez você não ache mais o tempo pois ele não aguenta mais o trauma que passou com suas tentativas de matá-lo e agora ele faz de tudo para se esconder de você.

É genial, veja:


Meus deus, eu não consigo parar de falar sobre as tirinhas!! Mas eu preciso... 

Mas depois de tudo isso, não posso deixar de citar que ainda há tirinhas fazendo o leitor pensar, com o humor característico, sobre a influência que o consumismo atordoa nossas mentes e nossas escolhas quanto aonde empregamos nosso dinheiro; a imagem falsa que fazemos de nós mesmo na internet e as máscaras de felicidade constante que insistimos usar em público; a necessidade que alguns têm ouvir vozes para não ter que encarar a solidão; a vida inútil que você vê passar pelos seus olhos ao ter apontada uma arma para sua cabeça; o poder que o seu chefe tem para diminuir seu potencial e esmagar a suas ideias; os problemas que um recém-nascido tem que enfrentar por ter pais lhe exigindo ser um prodígio (por pressão social); a dificuldade de concentração e impertinência que as ideias têm que aparecerem nas horas mais impróprias; algumas questões que devem ser lembradas antes de dizer o "sim" quando finalmente se sobe ao altar; as mensagens que os reencarnados têm para nos passar e nossa incapacidade de lhe dar ouvidos; o sonhos realistas que nos confundem a cabeça; a (in)justiça da divisão de tarefas no trabalho e a (in)razoabilidade das respectivas recompensas por tal trabalho. 

Enfim, como disse antes, este pequeno livro contém 91 tirinhas, portanto, inúmeros temas pesados, por assim dizer, são abordados. Portanto, esse livrinho é leitura obrigatória e eu definitivamente recomendo para todos, estando depressivos ou felizes, melancólicos ou alegres, pessimistas ou otimistas, pois qualquer um desses estados de espírito são propensos  receber a acidez deste tipo de senso de humor.

Para finalizar, peço para que aguardem a análise de outras obras de Rafael Koff.

  

2 comentários:

  1. Adorei o review! Obrigado por ler os quadrinhos com tanta atenção e por interpretar o significado por trás de muitos deles. Um grande abraço!

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    1. Eu que agradeço por ter lido esta review Rafael. Que bom que gostou! Adoro seu trabalho e desejo que continue sempre tão profundo e cheio de significados ocultos para eu me divertir interpretando-os! ^^ Abraço!

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